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A QUINTA DÉCADA DA EPIDEMIA DE AIDS

É possível acabar com a doença como problema de saúde pública?

A quinta década da epidemia de Aids | Imagem: pikisuperstar/Freepik.com
A quinta década da epidemia de Aids | Imagem: pikisuperstar/Freepik.com

Boletim MOPAIDS
01/12/2022

Boletim Mopaids nº6

Por Dra. Mariângela Simão*

Nos mais de 40 anos que se passaram desde o início da epidemia da AIDS, muitos avanços foram conquistados. Porém, mesmo com todos os avanços tecnológicos das últimas décadas, ainda não é possível pensarmos a curto prazo em uma finalização da epidemia do HIV como um problema de saúde pública globalmente – não enquanto tantas pessoas ainda não têm acesso a diagnóstico mais precoce e também a tratamento continuado. Ademais, é importante lembrar que, apesar do tratamento ter melhorado em muito a qualidade de vida das pessoas que vivem com o vírus, ainda não existe cura. E em 2021, cerca de 650.000 pessoas perderam a vida por causas relacionadas ao HIV e infelizmente ainda tivemos cerca de 1,5 milhão de novas infecções. Temos, em suma, muita estrada para percorrer

O que ainda observamos em todo o mundo é uma concentração do número casos em grupos específicos da população, o que gera um problema ainda maior do ponto de vista da saúde pública. À medida que o vírus deixou de ser tão “democrático” – ou seja, deixou de atingir a todas as parcelas da população e passou a afetar em maior grau grupos específicos que já são mais vulneráveis por questões como nível de renda, etnia, orientação sexual, uso de drogas etc. – há um risco mais elevado de que os recursos necessários para o enfrentamento ao HIV não sejam propriamente priorizados e alocados.

Em termos de tratamentos disponíveis, não podemos negar que já tivemos muitos avanços científicos em relação aos antirretrovirais e também no aumento do acesso a esses tratamentos, inclusive ao acesso precoce, o que tem levado à diminuição substantiva de óbitos; também é crucial a questão do aumento da sobrevida por conta dos antirretrovirais em pessoas em tratamento.

Claro que em todos nós persiste a esperança de um dia termos uma vacina contra o HIV, uma vacina que seja segura e eficaz. Essa esperança, que já nasceu e morreu tantas vezes, renasce agora graças às novas tecnologias cuja pesquisa e desenvolvimento foram aceleradas durante a pandemia da COVID-19. Trata-se, sem dúvida, de um vírus bastante complexo – e, até hoje, os estudos de uma vacina contra o HIV não foram bem-sucedidos. Também há que se levar em conta que os investimentos mais substantivos em pesquisa têm sido em novos medicamentos, não em vacinas. Espera-se que novas plataformas utlizadas contra o SARS-COV2, como a do mRNA mensageiro, possam ter futuras aplicações em outros vírus, como o HIV.

Nas últimas décadas de busca por medicamentos eficazes e seguros contra o HIV, diversos medicamentos entraram e saíram do mercado por conta da toxicidade. Drogas como a estavudina, que eram efetivas como antivirais mas que causavam muitos efeitos colaterais, já não encontram mais espaço no mercado, e há muitas outras. Há, portanto, evolução no perfil de segurança e tolerabillidade. A batalha agora é termos medicamentos que permitam simplificar o tratamento e que sejam “amigáveis” para a pessoa vivendo com HIV. E que, a exemplo do que ocorreu com a hepatite C, leve à cura dessa infecção. Hoje, ainda recorremos a combinações de diferentes antirretrovirais para obter um tratamento mais efetivo e alcançar a supressão viral e isso implica em esquemas difíceis e muitas vezes com desafios para adesão.

De modo geral, a ciência, a pesquisa e o desenvolvimento têm avançado muito na questão do tratamento e menos nas questões comportamentais como o uso consistente do preservativo e nos determinantes de comportamentos sexuais de maior risco. É o que se observa neste ano com o lançamento do primeiro medicamento injetável para Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) ao HIV, o cabotegravir, e outros que estão em estudo e que são os chamados injetáveis de alta duração. Isso é algo que já funcionou no planejamento familiar: os anticoncepcionais injetáveis foram e continuam sendo bastante importantes para mulheres em todo o mundo. A expectativa é que os novos avanços medicamentosos possam ser benéficos na prevenção da transmissão do HIV, pois são mais fáceis de utilizar e apresentam menos efeitos colaterais. Mas precisamos ter equilíbrio também na medicalização da prevenção, que não vai funcionar se for alternativa única.

Quando relembramos os desafios da epidemia da AIDS, é importante ressaltarmos que, apesar dos avanços, constatamos que (infelizmente) as lições aprendidas com o HIV não foram propriamente utilizadas de forma ampla no recente desafio da COVID-19. Apesar dos tempos para o acesso ao tratamento e o desenvolvimento de uma vacina terem sido relativamente curtos, porque a COVID-19 é um vírus de transmissão respiratória muito rápida e uma fatalidade significativa, o acesso equitativo continuou se mostrando um enorme desafio no enfrentamento desta pandemia. Não aprendemos que acesso equitativo a vacinas em todos os países, por exemplo, em um tempo rápido, seria de interesse de todos e era uma responsabilidade de todos.

Por outro lado, mais recentemente, observamos um exemplo mais positivo: as lições aprendidas com o enfrentamento ao HIV e especialmente em relação ao envolvimento das comunidades mais afetadas nesse enfrentamento está se mostrando extremamente útil no caso da “varíola dos macacos”, em que se verifica, em todo o mundo, um grande movimento por parte dos homens que fazem sexo com homens para prevenir a propagação do vírus. As medidas de prevenção tomadas pelas comunidades mais afetadas estão no centro e atuando positivamente no sentido de evitar o aumento do número de casos em seu meio.

O HIV ainda será 100% curável, controlado e possivelmente um dia erradicado. É certo que ainda não chegamos lá, que ainda temos muitos desafios pela frente, mas creio que podemos dizer, com certa firmeza, que já demos muitos passos no caminho certo.

* Dra. Mariângela Simão é diretora da área de Acesso a Medicamentos, Vacinas e Produtos Farmacêuticos da Organização Mundial da Saúde (OMS)


Esta matéria faz parte do Boletim Mopaids nº6